LITERATURA
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As Rãs de Aristófanes: humor e reflexão na Grécia antiga
A dramaturgia na Grécia antiga não se limitou apenas às famosas tragédias. Na verdade, pelos menos três gêneros distintos foram encenados na Hélade: tragédia, comédia e drama satírico. Na Poética, o prestígio da tragédia é evidente, pois ocupa a atenção de Aristóteles longamente, ao passo que a comédia é referida quase sempre de passagem, talvez porque fosse o assunto da segunda parte da obra, que se perdeu. Ofuscada assim pelo acaso e pela tragédia, a comédia parece ser um gênero sem qualidades, menor, simples, quando na verdade é uma forma por vezes mais complexa que a tragédia.
Apresentaremos aqui uma introdução à comédia grega para aqueles que ainda não a conhecem ou não tiveram a oportunidade de apreciá-la melhor. Inicialmente, realizaremos uma retrospectiva histórica, abordando as origens e o desenvolvimento desse gênero, a fim de compreender seu papel na sociedade grega. Num segundo momento, falaremos da comédia As Rãs de Aristófanes, destacando algumas chaves de leitura para que o leitor possa apreciar a obra por si mesmo. Ao final desta experiência, esperamos, pelo menos, suscitar questionamentos sobre o lugar da comédia em relação aos outros gêneros dramáticos.
Começando pelo nome, “comédia” possivelmente tem origem relacionada ao kômos (κῶμος), um tipo de cortejo barulhento que ocorria principalmente durante a época da colheita da uva, de acordo com Grimal (1978, p.35): as pessoas percorriam as aldeias cantando e fazendo piadas para quem encontrassem pelo caminho. Oficialmente a comédia só integrará um concurso teatral ateniense por volta de 486 a.C., quase 50 anos depois da tragédia, instituída em Atenas em 534 a.C. (Grimal, 1978, p.31).
Diferente das tragédias, as comédias não tinham como objetivo a exposição de cenas violentas e catastróficas objetivando a catarse, mas sim provocar o riso e transmitir críticas a um grupo, tipo ou indivíduos específicos. Estruturalmente, a comédia copiava a tragédia e tinha, portanto, o mesmo tempo de apresentação durante os festivais. No entanto, a apresentação da comédia era um espetáculo bem diferente da tragédia, com seu figurino e máscaras já determinados: afirma Grimal (1978, p.57-58) que o espetáculo cômico era "muito mais variado, muito mais animado, muito mais extravagante", já que "dependia mais da imaginação do poeta".
Aristófanes foi o primeiro autor capaz de desvencilhar a comédia de sua origem popular e coletiva, conferindo-lhe autenticidade. Sua comédia defende claramente certos valores políticos e sociais, como conservadorismo, patriotismo ateniense, mas ao mesmo tempo manifesta respeito pela vida e temor à guerra. Dessa forma, ele denuncia tudo que acreditava ser prejudicial para Atenas, não poupando nem os deuses nem os poderosos de sua época. Era patriota a seu modo mas, antes de tudo, um poeta extraordinário; o impressionante de suas obras é a capacidade de fazer rir e pensar de modo crítico simultaneamente.
Como pontua Andrade (2023, p.50), dois eventos históricos são cruciais para entender do que trata As Rãs. O primeiro é a morte dos grandes trágicos atenienses: Ésquilo já estava morto há algum tempo e, entre 407 e 405 a.C., morrem Sófocles e Eurípides. As Rãs é encenada pela primeira vez em 405 a.C. e trata diretamente da morte dos grandes trágicos. O segundo evento é a Guerra do Peloponeso: Atenas estava em conflito com Esparta e extremamente desgastada; sua política vivia o caos, com constantes ameaças à democracia, e a economia sofria duros golpes com diversas derrotas no campo de batalha.
Mas, então, do que fala essa peça? A história começa com duas personagens: o deus grego Dioniso, considerado o deus do teatro, que utiliza um disfarce para se passar por Héracles, e seu escravo Xântias. Eles se dirigem à casa de Héracles, onde Dioniso explica que sente saudades de Eurípides, e reclama da falta de bons trágicos vivos. Assim, ele decide ressuscitar Eurípides e, para isso, precisa viajar para o Hades (o mundo dos mortos para os gregos antigos). Dioniso pede algumas dicas a Héracles, que já havia viajado pela região. Héracles sugere que Dioniso viaje com Caronte, o barqueiro que conduz as almas ao Hades. Para atravessar o rio, Dioniso é obrigado a remar o barco ao som de um coro de rãs (daí o nome da peça), o que enfurece o deus, mas diverte o leitor (ou espectador).
Adentrando o Hades, Dioniso e Xântias vivem uma miniodisseia, passando por várias aventuras, agradáveis ou não, mas todas engraçadas para o leitor. O comportamento de Dioniso na peça é particularmente interessante: o deus é retratado como um bom covarde, que usa o disfarce de Héracles para tentar impor algum medo, mas tenta o tempo todo empurrar os problemas para cima de seu escravo. Por fim, eles chegam ao palácio de Hades (nome também do deus dos mortos), onde um escravo explica que há uma disputa acontecendo entre os admiradores de Eurípides e os de Ésquilo, para decidir a quem pertence o trono de melhor poeta trágico.
Dioniso, como deus do teatro, é escolhido para juiz de um exame que determinará o melhor dentre os dois poetas. Ele decide testar diversas habilidades artísticas de ambos, com o objetivo claro de escolher o melhor para retornar à vida em Atenas e escrever novas tragédias, inspirando o espírito ateniense em um contexto de derrotas bélicas e crise política. Eurípides é o trágico ligado à filosofia, retórica e erotismo, colocando o cotidiano em cena; já Ésquilo é um homem severo, representante dos valores tradicionais, dos deuses e da moral conservadora, que só coloca em cena aquilo que é nobre.
Qual dos dois vence o exame, qual poeta Dioniso escolhe para salvar Atenas? Essa parte deixo para que o leitor curioso e interessado descubra com a inestimável e engraçadíssima experiência de ler a peça.
E quais seriam alguns pontos a se dar atenção durante a leitura para conseguir depreender um significado mais amplo da obra? Evidentemente, uma leitura tão distante temporal e culturalmente do contexto original da peça impede que saibamos exatamente o que os helenos viam como relevante na obra e como a interpretavam. Entretanto, partindo do nosso conhecimento da cultura clássica, podemos fazer algumas inferências.
Em As Rãs, há uma clara dualidade, uma tensão entre forças contrárias, entre o que é nobre e o que é vil - fenômeno que se manifestava em diversos eixos da vida dos gregos, opondo-se senhor e escravo, cidadão e estrangeiro, aristocrata e servo, virtude e vício, bom escritor e mau escritor, bom exemplo para a cidade e mau exemplo. Como essa dualidade aparece na peça? Logo no início, já temos um contraste entre o escravo (Xântias) e o senhor (Dioniso). Entretanto, ao contrário do que se espera, não é Xântias que apresenta um comportamento baixo e vil, mas Dioniso, justamente porque ele representa o cidadão ático contemporâneo de Aristófanes, o que reforça o tom crítico em relação aos atenienses. Para Andrade (2023, p.63-64), Dioniso não é virtuoso, é covarde e estúpido; já Xântias comporta-se como um nobre, é corajoso e inteligente. Ou seja, os comportamentos estão invertidos em relação ao que seria esperado pelos espectadores.
Essa dualidade também também se faz presente no coro, pois não há apenas um, mas dois coros. Um é um coro de rãs que habitam um lago que separa o mundo do Hades; o outro é composto por iniciados nos Mistérios de Elêusis. Não poderia haver dualidade maior, já que um é composto de animais vulgares e outro de celebrantes de um dos ritos mais respeitados em Atenas.
Há ainda uma outra dualidade, talvez a mais relevante da peça, entre as personagens dos tragediógrafos Eurípides e Ésquilo que, como comentado anteriormente, propõem visões de mundo distintas em suas obras, o que nos leva à questão central da peça, a oposição entre o vil e o virtuoso.
A peça traz também uma importante reflexão sobre o papel do poeta. A nobreza (ou vileza) dos cidadãos provém da poesia que os educa, ou seja, os poetas são os educadores da pátria. Podemos ver isso nos versos 727-29, em que o coro afirma que os melhores cidadãos são "os cidadãos que sabemos sensatos e atenienses de nascimento, /Homens que sempre nos mostram que têm justiça, beleza e grande nobreza, /Criados entre palestras, danças e cantos corais, nas artes das Musas" (Aristófanes, 2023, p.225), ainda que eles sejam desprezados no presente.
Àqueles, portanto, que se aventurarem na leitura de As Rãs, é crucial reconhecer que, embora seja uma comédia, Aristófanes não busca apenas provocar risos; a séria situação de Atenas não o permite. Ele destaca a relevância dos poetas na educação do povo e desafia os espectadores, mostrando que, após cumprir seu papel como educador através da peça, cabe a eles a ação prática. Como leitor, você será convidado a refletir sobre o papel da arte na sociedade, na educação e seus desdobramentos na transformação do mundo ao seu redor.
REFERÊNCIAS
ARISTÓFANES. Rãs. Tradução de Tadeu da Costa Andrade. Araçoiaba da Serra: Mnêma, 2023.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015.
GRIMAL, Pierre. O teatro antigo. Tradução de António Gomes da Silva. Lisboa: Edições 70, 1978.
SOBRE O AUTOR
Pedro Leonardo Albuquerque Tobias é aluno do quinto ano de Letras na UEM. Atualmente desenvolve projeto de iniciação científica intitulado "Explorando a caracterização de Dioniso em As Bacantes e As Rãs", sob a orientação do professor Luiz Carlos André Mangia Silva.