VIDEOPOEMA
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"Se Eros não..." (Antologia Grega, Livro 12, 76 e 78)
A Antologia Grega reserva o livro 12 de seus 16 volumes aos poemas de tema homoerótico, obra de autores de muitas épocas. Sobressai ali a produção helenística (323-30 a.C.), com nomes como Calímaco, Asclepíades, Posidipo, Meleagro, entre outros, e o nome singular do prolixo Estratão (entre I a.C. e II d.C.). O livro é composto por 258 epigramas, mais de uma centena helenística, outra centena de Estratão (que toma seus predecessores, inclusive os helenísticos, como modelo) e o restante de nomes menores.
A pederastia é um traço cultural bem conhecido entre os gregos, como demonstram as fontes estudadas por Dover (1994) em A homossexualidade na Grécia antiga. A um só tempo pedagógica, política, erótica e viril, a instituição da pederastia entre os antigos colocava em contato homens maduros com rapazes em vias de ingressar na vida adulta, pública. Decorre dessa prática cultural uma poesia que canta os rapazes admiráveis, cujos encantos são capazes de capturar a atenção destes homens. Tornada tópica literária, e focalizando, nesse caso, exclusivamente a contraparte erótica de tais relacionamentos, vemos nos poemas do livro 12 da Antologia a representação das interações entre tais amantes, um que busca, um adulto ativo (chamado por isso ἐράστης, erástes, termo de sentido ativo), outro que é buscado, um rapaz (ἐρώμενος, erómenos, de sentido passivo).
Nos poemas da AG, contudo, esse traço cultural inclui especialmente amantes a dinheiro, o que afasta esta produção da pederastia tradicional, já que a venalidade não era característica de tais relações: a questão era problemática justamente porque a honra de um rapaz livre estava em jogo, como esclarece Foucault (1984), e não a de um amante servil ou interesseiro. O estatuto da cidadania complicava as atrações onde a pederastia era uma instituição (como em Atenas). Já nos epigramas da AG, a dialética costuma ser mais simples, e os amantes podem ser seduzidos por presentes e dinheiro. A frequência com que os mesmos temas se repetem no livro evidenciam ainda seu aspecto emulativo, imitativo, tópico.
Nos poemas 76 e 78, ambos de Meleagro de Gádara (o famoso compilador da Guirlanda no século I a.C.), para além do elogio à beleza de um rapaz (Zoilo e Antíoco), podemos ver uma característica importante da poesia antiga, ligada à imitação — e nesse caso em particular, também à auto-imitação. No livro 12 da AG, quatro epigramas em sequência aludem à beleza dos rapazes comparando-a com a beleza de Eros. São os poemas 75-78 (respectivamente, Asclepíades, Meleagro, Asclepíades ou Posidipo, outra vez Meleagro). Mais antigos que os do antologista, os poemas de Asclepíades (e Posidipo), ativo em III a.C., servem de modelo a Meleagro. Mas depois de imitar seus predecessores, Meleagro imita o seu próprio poema, sem que seja possível saber qual vem em primeiro, 76 ou 78.
Em 76, o eu-lírico compara o jovem Zoilo com Eros alado, afirmando que se o deus fosse privado de seus atributos (asas, arco, aljava e flechas), ele se converteria em Zoilo, equivalendo assim a beleza humana do jovem à beleza divina desse Eros despido. No poema 78, o eu-lírico elogia o jovem Antíoco variando a sentença: se Eros (despido de arco, aljava, flechas e asas) vestisse agora um manto (ou clâmide) e um chapéu (especificamente um pétaso, usado por jovens durante seus exercícios), o deus de novo pareceria o humano…
Mais do que os epigramas emulados (75 e 77), que oferecem parte do vocabulário e o tipo de elogio, o poeta também mira a si mesmo: os termos já destacados (asas, arco e tudo mais) são os mesmos nos dois poemas, variando apenas, ocasionalmente, em caso, gênero e número ou na posição no verso (asas: em 76 e 78, pterá, v.1; aljava: em 76 e 78, pharétran, v.1 e v.2; arco: em 76, tóxon, v.1, em 78, tóxa, v.2). Os dois poemas começam com a partícula condicional “Se” (Ei), termo aliás que abre os quatro poemas da série. Nomes próprios ecoam aos montes (duas vezes o nome de Éros em 76, v.1 e v.3, duas vezes em 78, também v.1 e v.3), do amado Antíokhos (duas vezes em 78, v.3 e v.4) e do amado Zoílos (uma vez em 76, v.4). Mais emblemática é a repetição no terceiro verso: a despeito dos problemas de edição (seguimos Gow e Page, 1965, para o texto), vemos um claro paralelismo entre os versos: em 76, o eu-lírico exclama: “juro, não!, pelo próprio [deus] alado” (οὐκ, αὐτὸν τὸν πτανὸν ἐπόμνυμαι), enquanto em 78, “juro, sim!, pelo efebo esplêndido” (ναί, μὰ τὸν ἁβρὸν ἔφηβον ἐπόμνυμαι). Note que o verso 3 (parte dele) é idêntico, com variação: o primeiro abre com uma negação (ouk), o segundo com afirmação (naí), segue em ambos um acusativo (autòn tòn ptanón e mà tòn habròn éphebon, “pelo próprio alado” e “pelo efebo esplêndido”), depois o verbo, idêntico em tudo nos dois casos (posição, pessoa, número, etc., epómnymai, “juro”). Tais repetições e paralelismos estão a seu modo reproduzidos nas traduções.
REFERÊNCIA
DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia antiga. Trad. de L. S. Krausz. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Trad. de M. T. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, v.2.
GOW, Andrew Sydenham Farrar; PAGE, Denys Lionel. The Greek Anthology: Hellenistic epigrams. Vol. II. Commentary and indexes. Cambridge. Cambridge University Press, 1965.
PATON, William. The Greek Anthology (10-12). London: Harvard University Press, 1999 (1ª edição 1918).
SOBRE O AUTOR
Luiz Carlos André Mangia Silva é professor associado da UEM. Pesquisa e traduz poesia helenística (epigrama) e romance grego (Dáfnis e Cloé, de Longo de Lesbos).