LITERATURA COMPARADA
LITERATURA COMPARADA
Ariana para Dionísio: mito, erotismo e elegia amorosa em Hilda Hilst (Parte 1)
I
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e canto apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã, sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência (Hilst, 2017, p. 256).
O poema acima constitui o primeiro de uma série de dez peças que compõem a seção “Ode fragmentária para flauta e oboé”, integrada à obra Júbilo, memória, noviciado da paixão, publicada em 1974 por Hilda Hilst e editada por Masso Ohno. Esse livro, na produção poligráfica da autora, dado que Hilda Hilst produzia simultaneamente diferentes gêneros, é o primeiro volume de poesia posterior ao “jorro dramático” e ao início já maduro de sua prosa ficcional, conjunto que, segundo Pécora (2002, p. 12), afetou de modo decisivo a conformação de seus versos. A poesia dessa fase acusa, de fato, o impacto da novidade da prosa ao incorporar procedimentos metafóricos, intertextuais e simbólicos, de tal maneira que, em relação aos livros iniciais, há não exatamente uma diferença de valor poético, mas de intensidade e complexidade.
Esses extratos da poética hilstiana podem ser descritos por diferentes vias. Uma delas por meio de certo cariz arcaizante que remete à tradição da elegia erótica, espraiada pelos dez poemas da seção que doravante pretendemos analisar em série. Nela, Hilda Hilst constrói uma persona lírica identificada com Ariana, realizando o que Mielietínski (1987, p. 31; 181; 185) denomina remitologização. Para o mitólogo, a remitologização refere-se ao processo pelo qual a literatura moderna revisita e reelabora mitos antigos, reinserindo-os em novos contextos simbólicos, narrativos e poéticos. Trata-se de atualizar o imaginário mítico, preservando sua força arquetípica enquanto o adapta ao campo literário no qual é evocado.
Assim incorporada no poema hilstiano, Ariana, marcada pelo arrebatamento amoroso, deseja incessantemente a presença do amado ausente, cuja falta lhe causa dores e inquietações infindas, tornadas matéria de enunciação lírica. Essa antítese estrutural reside na figura de um amado esquivo ou indiferente, configurando a poesia como espaço fundado precisamente sobre o desejo projetado sobre esse outro ausente, em face do que a voz poemática parece responder na forma de um apelo essencial e atemporal por meio da descoberta de um movimento que tem no erotismo seu “nervo central” (Coelho, 1980, p. 304) e, ao fim e ao cabo, a celebração do poder encantatório da poesia lírica.
No caso específico da seção, tal movimento se articula na relação entre os mitos de Dionísio (ou Dioniso, ou Baco, ou Brômio), Ariana (ou Ariadne), o erotismo e o fazer poético. É nesse vínculo que o eu lírico feminino penetra os afetos excessivos associados ao deus, especialmente ao êxtase (Harvey, 1987, p. 169) e ao delírio místico (Brandão, 2014, p. 173) e, ao fazê-lo, qualifica os padecimentos da amante solitária. Talvez seja rentável anotar, ainda que de relance, a manifestação do erotismo como um exercício poético, espiritual e material capaz de produzir uma forma de autoconhecimento, uma experiência com o corpo e com a alteridade (Paz, 1984, p. 18). Essa visão se alinha à de Bataille (2021) na medida em que há uma relação entre mito, erotismo e continuidade da experiência erótica. Nessa chave, a poesia se converte em um testemunho dos apelos sensoriais do eu lírico e seu páthos, alçando-a como erotização da linguagem (Paz, 1984, p. 20). Na poesia de Hilda Hilst, erotismo e linguagem literária mantêm uma relação constitutivamente indissociável, de modo que as obras dedicadas ao tema ultrapassam o mero registro do sexual, operando sobretudo uma transfiguração da experiência erótica elementar, como defende Castello Branco (1985; 1989), sobretudo pelo uso da metáfora sugestiva, a elipse e outros recursos afins. A essência do erotismo, sob o prisma da linguagem, remete assim à noção de desejo, que confere à palavra poética sua própria corporeidade. A lírica de Hilda Hilst configura-se, desse modo, como um espaço do desejo, território onde imagens sensoriais e sensuais se articulam para expressá-lo.
Observa-se, entretanto, que, apesar da invocação ao deus, a persona lírica assume uma postura ambivalente diante do mito-amado, oscilando entre entrega e resistência, submissão e transgressão. Pode-se falar, assim, de uma poesia que se aproxima do registro místico, no qual o amado mítico funciona como selo de participação em uma esfera outra, sublime, mais apta a resistir ao tempo e ao esquecimento. Trata-se, em suma, de uma poesia erótico-metafísica, conforme observa Pécora (2002, p. 13), capaz de suscitar a reminiscência e a presença viva da mitologia e sua atualização (Barthes, 1977, p. 17).
***
Adentrando a arquitetura do primeiro poema, notamos, de primeira visada, que sua configuração formal revela, já em sua superfície, a tensão entre a herança arcaica de uma evocação elegíaca e a elaboração moderna do verso, do qual, diga-se de passagem, a poesia hilstiana é tributária. A estrofação é fragmentada, distribuída em blocos breves, formada por um terceto inicial, dois dísticos intermediários e uma estrofe final mais longa e assimétrica. Como já foi apontado por Wanderley (2015), Hilda Hilst opera uma reformulação composicional das formas clássicas, construindo complexas relações dialógicas entre a tradição e a modernidade poética. No caso da seção em análise, a poeta a intitula como ode – referência à forma que aparecerá em outros títulos, como Ode fragmentária (1961), Odes maiores ao pai (1963-1966) e Da morte. Odes mínimas (1980), ainda que em termos propriamente estruturais sua prática poética revele um afastamento deliberado das características tradicionais associadas à forma. A autora mobiliza o nome, mas subverte suas convenções estruturais e temáticas, produzindo uma reelaboração crítica e contemporânea da ode.
No poema I, tal disposição produz um efeito de movimento entrecortado, aproximando o poema do registro elegíaco, que historicamente privilegia o tom íntimo, meditativo e marcado pela oscilação afetiva (Ramazani, 1994, p. 45; Maulpoix, 2001, p. 320). Esse resultado em parte é encontrado pela própria organização da peça em quatro estrofes claramente demarcadas. O tríptico inicial (vv. 1-3) (“É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas. / Voz e canto apenas / Das coisas do lá fora”) opera como um enunciado inaugural através da formulação do desejo e do ressentimento pela ausência do amado. Já o dístico (vv. 4-5) (“E sozinha supor / Que se estivesses dentro”) denota uma curta pausa e condensa a hipótese imaginativa da voz lírica feminina em torno do tom elegíaco amoroso. Os versos do próximo dístico (vv. 6-7) (“Essa voz importante e esse vento / Das ramagens de fora”) sugerem o retorno à paisagem/rumor externo. Na estrofe final (vv. 8-17), na forma de estrofe longa livre, se desenrola o encerramento do argumento lírico em que se dão negações e afirmações, alternância entre desejo e o páthos da espera, invocação/autoafirmação (“eu Ariana, preparando / Aroma e corpo”), fechando o poema com a imagem do verso como efeito da ausência: “Se fazendo de tua sábia ausência.”
Nessa chave de leitura, a estrutura é predominantemente fragmentária e análoga ao procedimento elegíaco de corte e retesamento do enunciado, marcado com pequenos blocos (trípticos, dísticos) que criam acumulação rítmica e sensação de série ritualizada de um discurso hesitante, que se constitui essencialmente melancólico. A presença final de uma estrofe longa funciona como desenvolvimento e síntese, aforisma e desenvolvimento do páthos lírico em torno do jogo erótico que a voz poemática, sob a máscara de Ariana (v. 15), projetará sobre o amado Dionísio.
Ainda do ponto de vista poético-formal, notamos o uso recorrente do enjambement, notadamente entre os versos 2-3; 4-5; 6-8; 8-10; 11-13; 14-16; 16-17. O efeito do encavalamento cria ambiguidade sintática controlada, como se o pensamento do eu lírico hesitasse entre dentro/fora, metaforizando a própria lógica do desejo: adiamento, prolongamento da espera. As cesuras internas constituem outro aspecto a ser notado na arquitetura do poema, aparecendo sobretudo via pontuação e vocativo: “É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.” A vírgula após “Dionísio” reforça o tom evocatório, uma pequena cesura; o ponto depois de “canto” em “O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.” impõe uma quebra enfática que recomeça a invocação. Essas pausas não obedecem a um pulso métrico regular, mas a um impulso retórico, matiz de uma dicção lírica que encontra na queixa melancólica e na impotência do eu lírico o substrato elegíaco mais conveniente para tratar da paixão (Veyne, 1985, p. 51; 75).
No poema de Hilda Hilst, a fala de Ariadne se estrutura a partir de uma primeira pessoa que personaliza a experiência da tensão (“eu jamais ouviria… eu Ariana, preparando”), mas essa afirmação está atravessada por um modo particular do desejo: em uma primeira camada de sentido - a mais superficial -, Ariadne nega desejar a vinda de Dioniso (“prefiro que não venhas”), ao mesmo tempo em que imagina, convoca e quase encena a presença dele. Trata-se, portanto, de um desejo negativo, em que a enunciação realiza um movimento paradoxal: verbalmente recusa aquilo que afetivamente espera. Essa oscilação entre proferir e desejar constitui o mote do erotismo no poema. Do ponto de vista mitopoético, Hilst retoma a tensão constitutiva da relação entre Ariadne e Dioniso. No mito, Ariadne deseja intensamente a presença do deus, mas Dioniso, figura do excesso e da alteridade inapropriável, nunca se oferece plenamente: ele aparece, mas se esquiva; dá-se, mas logo se retira (Detienne, 1988). O desejo de Ariadne é, portanto, marcado pela incessante despossessão, ou seja, ela deseja justamente aquilo que a excede e a dispensa. A poeta reinscreve essa dinâmica ao construir uma voz feminina que imagina o encontro ao mesmo tempo em que o nega, como se a própria recusa funcionasse para preservar o deus em estado de potência, inacessível, e assim erotizável. Nesse jogo, o erotismo emerge não da posse do outro, como ocorria com as mênades, mas do intervalo entre presença imaginada e ausência real. O campo erótico hilstiano, assim, é marcadamente retórico, pois nasce no movimento entre o que se diz e o que se suspende, entre o enunciado que recusa e a fantasia que convoca. A voz lírica de Ariadne habita exatamente esse trânsito, o lugar onde o desejo só se mantém vivo porque jamais se cumpre, ecoando a própria lógica dionisíaca, em que o excesso e a retirada fazem parte de um mesmo gesto. (Continua no próximo número...)
REFERÊNCIAS
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BATAILLE, George. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
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DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto. Trad. Carmem Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2001.
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SOBRE O AUTOR
Sandro Adriano da Silva é professor da UNESPAR, onde ensina Literatura Brasileira. Desde 2022, desenvolve tese de doutoramento pela UFPR, com o título Figurações da poesia elegíaca de Hilda Hilst.