LITERATURA COMPARADA
LITERATURA COMPARADA
As tensões dionisíacas em As bacantes e Lavoura arcaica
Dioniso é, por excelência, a divindade que encarna a dualidade e o paradoxo. É o deus dúplice, de duas faces; é o mais clemente para os homens e o mais temível entre eles, conforme Eurípides (Bacantes, v. 860-861). O vinho, presente do deus aos mortais, simboliza essa ambiguidade: faz adormecer os cuidados e acordar o riso (Eur., Bac., v. 376-386), mas também pode conduzir à tragédia e à destruição. Em As bacantes, as mulheres tebanas, tomadas pelo delírio místico, abandonam seus lares e entregam-se a cortejos orgiásticos. Reunidas no monte Citéron, tocam flautas e tamborins, dançam, operam milagres, brincam com serpentes e amamentam filhotes de corças e lobos como se fossem seus próprios filhos. Contudo, quando ameaçadas ou provocadas pela fúria divina, perseguem homens, dilaceram animais e devoram suas carnes cruas.
É o mesmo vinho que conduz o protagonista de Lavoura arcaica, o primeiro romance do escritor brasileiro Raduan Nassar, em um mergulho para dentro e fora de si, enquanto rejeita a autoridade paterna e busca construir sua própria identidade. Assim como Dioniso, André personifica as forças do desequilíbrio e da transgressão. Ao contrário de seu pai, Iohána, que se esforça para manter a ordem e a unidade familiar, André surge como uma “planta improvável”, uma flor venenosa que “brota com virulência rompendo o musgo dos textos dos mais velhos” (Nassar, 1989, p. 50).
São essas forças antagônicas — ordem e desordem, tradição e modernidade, dever e desejo — que nos interessam neste artigo. Nossa intenção é analisar como as dualidades se manifestam nas personagens de As bacantes e Lavoura arcaica, refletindo sobre os impulsos dionisíacos e a questão do desequilíbrio na literatura ocidental.
Não podemos evocar Dioniso sem esclarecer as particularidades de seu culto e a maneira como os gregos interpretaram um dos aspectos mais desviantes de sua religião. O simples fato de ser o único deus estrangeiro no panteão grego já parece ser motivo suficiente para causar estranheza em uma sociedade que se definia pela oposição bárbaros e helenos. Junito Brandão (2021, p. 12), em Teatro grego: tragédia e comédia, observa que os mitos naturalistas de divindades da vegetação, como o dionisismo, chocavam-se violentamente com a religião oficial e aristocrática da pólis, cujos deuses estavam sempre atentos para esmagar qualquer desmedida de pobres mortais que aspirassem à imortalidade.
Ora, era justamente por meio do delírio báquico que os homens se libertavam dos condicionamentos éticos, políticos e sociais de sua época, acessando seu lado divino. Após se entregarem a danças vertiginosas e caírem desfalecidos, os devotos de Dioniso acreditavam sair de si mesmos pelo processo de êxtase, enquanto o deus mergulhava em seus adoradores pelo processo de entusiasmo. Nesse estado, perdiam temporariamente sua identidade social e dissolviam-se em uma conexão mística com o deus. Conforme Jean-Pierre Vernant (2006, p. 69), a experiência dionisíaca possibilitava um “contato mais direto, mais íntimo, mais pessoal com os deuses” e o “privilégio de liberar, já na existência terrena, a parcela de divino que permanecera presente em cada um”.
Mário da Gama Kury, na tradução que utilizamos (cotejada com a de Torrano), caracteriza As bacantes de Eurípides como um hino de louvor ao novo deus, ao vinho e ao delírio místico. Na peça, Dioniso regressa à Grécia, acompanhado por mênades e sátiros, com o intuito de afirmar sua divindade e estabelecer seu culto em Tebas, cidade governada pela metade humana de sua família. Filho de Zeus e Sêmele — irmã de Agave, mãe de Penteu —, Dioniso é primo do rei. No início da trama, o deus já percorreu a Lídia, a Frígia, a Pérsia e toda a Ásia, onde “os gregos se misturaram com diversas raças bárbaras” (Eur., Bac., v. 18-20), até finalmente chegar em Tebas, sua terra natal. De certa forma, trata-se de uma narrativa de retorno.
O objetivo de Dioniso é vingar a honra de Sêmele e punir suas tias, que negaram sua divindade e questionaram a legitimidade de Zeus como seu pai. Para castigar essa insolência, ele induz as mulheres da cidade a abandonarem seus lares e se unirem às mênades nos altos montes. Tirésias, o adivinho cego, e Cadmo, o fundador de Tebas e avô de Penteu — figuras que representam a sabedoria adquirida pela experiência — aceitam prontamente o deus. Tirésias, em particular, enfatiza que celebrar Dioniso não significa abandonar as tradições: “Nenhum pensamento afetará as tradições que recebemos de nossos ancestrais, antigas como o tempo e resistentes aos sutis raciocínios dos cérebros sofísticos” (Eur., Bac., v. 200-204).
A postura de Penteu, por outro lado, revela-se inflexível e insolente. Sua recusa em reconhecer Dioniso como uma divindade e o fato de excluí-lo de suas libações anunciam seu desfecho trágico. Embora seja um jovem governante, Penteu encarna a tradição em seu aspecto mais autoritário e conservador. Sua resistência não é apenas uma rejeição religiosa, mas uma reafirmação de sua autoridade sobre Tebas. Quando Dioniso oferece uma solução conciliatória, Penteu prontamente recusa: “E que será de mim? Um servo de meus servos?” (Eur., Bac., v. 803).
Opondo-se à ordem está o filho de Sêmele, o deus da máscara, do travestimento, da produção de novas identidades e da irracionalidade. Sua presença subverte as normas de gênero e poder, revelando a fragilidade do controle exercido por Penteu. O deus convence-o a vestir trajes femininos e espionar as bacantes no monte, culminando na sua morte e na completa desintegração de seu corpo, uma manifestação da desordem que ele tanto tentou conter. Sua própria mãe, Agave, exibe a cabeça do filho como um troféu, julgando ter nas mãos a cabeça de um filhote de leão.
Embora Lavoura arcaica pertença a um contexto literário e cultural distinto — publicado no Brasil em 1975, durante o regime ditatorial —, a obra compartilha as tensões presentes em As bacantes, o que nos permite uma leitura comparativa. Em Lavoura arcaica, Nassar dissolve as fronteiras entre prosa e poesia, criando uma narrativa que evoca o irracional por meio de uma linguagem profundamente lírica. O enredo, conduzido por fluxos de pensamento, sonhos e memórias, desenrola-se de forma não linear, transportando o leitor para múltiplos universos: o cristão, permeado por alusões à parábola do filho pródigo; o árabe, refletido na ascendência libanesa da família e nas diversas referências ao Alcorão; e o mundo da Grécia antiga, com destaque para os cortejos noturnos de Dioniso, que ecoam na atmosfera ritualística e transgressora da obra.
Na primeira parte do livro, André recebe a visita de Pedro, seu irmão mais velho, enviado pelo pai para trazê-lo de volta à fazenda. A chegada de Pedro desencadeia o fluxo lírico do protagonista, que expõe os motivos de sua fuga e suas complexas relações familiares, especialmente com Ana, sua irmã mais nova, com quem mantém uma relação incestuosa, e Iohána, o patriarca, cuja palavra é divina dentro dos limites da casa. Desde as primeiras linhas — o texto inicia com uma cena de masturbação e o gozo interrompido de André — fica evidente que ele é o desviante, aquele que desafia as normas familiares, movido pelo desejo e não pela razão; a ovelha negra do rebanho.
Enquanto Iohána prega a unidade familiar, reforçando a necessidade de coesão e obediência, André assume o papel de contestador, semelhante a Dioniso, que retorna para desestabilizar as bases da ordem familiar. Em várias passagens, André compara sua paixão por Ana a uma enfermidade, mais ou menos como as manifestações de Dioniso eram vistas como loucura ou possessão. O embate também está no modo de narrar dos personagens: os sermões do patriarca ecoam versos bíblicos e valorizam a palavra tradicional, ao passo que o discurso de André é confessional e descontrolado. Essa “epilepsia” verbal espelha a tensão central de As bacantes, onde a ordem tenta conter a selvageria:
[...] grite, grite sempre “uma peste maldita tomou conta dele” e grite ainda “que desgraça se abateu sobre a nossa casa” e pergunte em furor mas como quem puxa um terço “o que faz dele um diferente?” e você ouvirá, comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te fará “traz o demônio no corpo” [...] (Nassar, 1989, p. 40).
Há ainda outras oposições significativas, como a de civilização e selvageria. Na tragédia de Eurípides, a polaridade entre a civilização, associada à cidade e à casa, e a selvageria, vinculada à montanha e à mata, é bastante clara. As bacantes relaxam seus corpos em ramos de pinheiros viçosos (Eur., Bac., v. 684), fazem víboras de cintos (Eur., Bac., v. 698), forjam fontes de água, vinho, leite e mel (Eur., Bac., v. 704-711). A natureza, portanto, simboliza a ruptura com a ordem estabelecida. Esse mesmo simbolismo pode ser observado nas duas festas familiares em Lavoura arcaica, quando a família revive seus mitos, consumindo vinho e derramando-o sobre si mesmos, relembrando suas origens estrangeiras. Na última dança, Ana, adornada com as “quinquilharias” de prostitutas que André colecionava, assemelha-se às bacantes.
Nas duas obras, a repressão das forças irracionais, personificadas por Dioniso e André, culmina em desfechos trágicos. Em Lavoura arcaica, o pai, “possuído de cólera divina” (Nassar, 1989, p. 91), ao ver a filha dançando sensualmente e após tomar conhecimento da relação entre os irmãos, atinge-a com um alfange, uma espécie de foice. A morte de Ana impossibilita a união entre os irmãos, encerrando o ciclo de transgressão que permeia a narrativa. Por sua vez, a morte de Penteu e o banimento da família real em As bacantes concretizam a vingança de Dioniso, evidenciando que a racionalidade de Penteu, ao desconsiderar a irracionalidade inerente ao ser humano, não dá conta da totalidade da vida.
Para Penteu, consentir com o delírio das bacantes seria uma vergonha que ultrapassa “os limites da tolerância” (Eur., Bac., v. 785). Possuído pelo deus, entretanto, ele é tomado pelo desejo violento de observá-las soltas nas montanhas e aceita vestir-se de mulher. Assim como o rei tebano, Iohána encontra sua ruína ao desrespeitar suas próprias leis. Embora proclame que “o amor na família é a suprema forma da paciência” e que “mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido” (Nassar, 1989, p. 59), ele desaprova e pune o incesto entre os irmãos. No entanto, a relação entre André e Ana pode ser interpretada como uma consequência da lógica paterna, para quem a família deveria bastar.
Ao atingir a filha, Iohána também se condena, e seus sermões são, de alguma forma, continuados por André, seja da maneira original ou ressignificada. As duas festas revelam-se, enfim, amargas, conforme previsto por Penteu: “Será demais amargo o fim da grande festa que ele queria oferecer a todos nós!” (Eur., Bac., v. 356-357).
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 2021.
EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, As fenícias, As bacantes. Trad. de M. G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
EURÍPIDES. Bacas. Trad. de J. Torrano. São Paulo: Hucitec, 1995.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Trad. de J. A. A. Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SOBRE A AUTORA
Giovanna Pedrosa é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEM, com dissertação intitulada O delírio feminino em As bacantes de Eurípides.