RESENHA
RESENHA
Se piscar, tudo será em vão: "O olhar de Orfeu" de Maurice Blanchot (Parte II)
A reinterpretação de Maurice Blanchot acerca do mito grego de Orfeu e Eurídice se encontra em consonância com sua consideração crítica sobre a inspiração poética da criação literária. A jornada de Orfeu para resgatar Eurídice no submundo é tomada como uma alegoria para a jornada do poeta contemporâneo, que se move em um espaço instável em busca da obra de arte, mas nem Orfeu pode olhar diretamente para Eurídice nem o poeta pode conhecer o que é a obra, que nunca aparece diante dele acabada, visto que tal atitude violaria sua condição de obra poética, cuja noção está associada a uma perda da origem.
Blanchot descreve essa busca pela obra de arte e pela inspiração poética a ela relacionada como uma “caçada noturna”, onde o herói desce ao mundo dos mortos, assim como o poeta aceita as tensões incontornáveis envolvidas em sua atividade enquanto poeta, aceitando suas relações com as forças que o encurralam entre o ser e o não-ser, tornando-se um estrangeiro entre dois mundos diferentes. “Como Orfeu, o escritor deveria ser capaz de descer às profundezas da morte ou da noite para trazer Eurídice, silhueta obscura, à luz do dia” (Marques, 2014, p. 90).
No contexto em que esse mito é retomado, mais especificamente na seção intitulada “O olhar de Orfeu” do livro O espaço literário, o que está em questão é a possibilidade limite da escrita e também da mortalidade humana. A partir das condições em que formula a questão da literatura, Blanchot argumenta, com sua linguagem nada acadêmica, que a autêntica inspiração literária surge do confronto com o desconhecido e o invisível, tal como Orfeu indo ao encontro do fantasma de Eurídice. Comentando a leitura que Blanchot faz desse mito no artigo O pensamento do exterior, Michel Foucault (2009, p. 235) considera que “Orfeu não viu aqui o rosto de Eurídice no movimento que o dissimula e o torna invisível: ele pôde contemplá-lo de frente, ele viu com seus próprios olhos o olhar aberto da morte”.
Blanchot procura descrever sob esse “olhar aberto da morte” os meandros obscuros da inspiração poética, onde mora um risco trágico corrido por todo aquele ou aquela que se consagra à poesia, à arte literária no geral. Orfeu deseja entrar na “outra noite”, numa dimensão onde a morte e a escuridão são incertas e perturbadoras. Ele deve trazer à luz o mistério da obra de arte sem o aniquilar pelo ato de olhá-la diretamente. Tarefa, desde o princípio, fadada ao fracasso; exigência que não deve ser respeitada.
O mito grego diz: só se pode fazer obra se a experiência desmedida da profundidade – experiência que os gregos reconhecem necessária à obra, experiência em que a obra é à prova de sua incomensurabilidade – não for prosseguida por si mesma. A profundidade não se entrega frontalmente, só se revela dissimulando-se na obra. Resposta capital, inexorável. Mas o mito não mostra menos que o destino de Orfeu é também o de não se submeter a essa lei última – e, por certo, ao voltar-se para Eurídice, Orfeu arruína a obra, a obra desfaz-se imediatamente, e Eurídice retorna à sombra; a essência da noite, sob seu olhar, revela-se como não essencial. Assim ele traiu a obra, Eurídice e a noite (Blanchot, 2011, p. 187).
Em um momento extremo da experiência do poeta, abre-se uma dimensão oculta, noturna; conforme as palavras de Blanchot, é onde surge a “experiência desmedida da profundidade”. Assim, julgando entrar na essência dessa noite, o poeta entra numa noite qualquer, num intervalo ausente de luz, mas um intervalo necessário como momento prévio à presença nítida dos objetos do dia, é a noite do não-ser em que, desde uma obscuridade fundamental, o poeta faz passar as palavras, num ato que lhe é inerente, para a tangibilidade do ser no mundo, como um produto concreto e positivo, como uma obra ou artefato à disposição. Todavia, o poeta entra nessa primeira noite e se perde nela. Seu destino está na outra noite, seu destino é descer até “o outro da noite”, até a alteridade extrema onde as coisas desaparecem entre a oposição do que é e do que não é, onde as sombras se destacaram completamente de seus antigos corpos. Essa é a exigência contraditória da própria obra: violar a lei que proíbe o contato direto com a obra. Por conta disso é que Orfeu trai a obra, Eurídice e a noite; se ele não o fizesse, tanto pior seria a traição contra ambas:
Mas não voltar-se para Eurídice não seria menor traição, infidelidade à força sem medida e sem prudência do seu movimento, que não quer Eurídice em sua verdade diurna e em seu acordo cotidiano, que a quer em sua obscuridade noturna, em seu distanciamento, com seu corpo fechado e seu rosto velado, que quer vê-la, não quando ela está visível mas quando está invisível, e não como a intimidade de uma vida familiar mas como a estranheza do que exclui toda intimidade, não para fazê-la viver mas ter viva nela a plenitude de sua morte (Blanchot, 2011, p. 187, grifos nossos).
Esse espaço imaginário de experiência, de inspiração e criação poéticas pressupõe uma espécie de experiência com o não-ser que tem pouca proximidade com aquele tipo de experiência que pertence à primeira noite, na qual os vínculos com as possibilidades de um “eu” começar e terminar ações no mundo permanecem fortes e em que está em jogo o não-ser como avesso do ser, não-ser que encontra na obra reunido o princípio de sua transformação positiva, de efetivação, de realização. A experiência com o não-ser na outra noite pertence a uma possibilidade diferente em que a condição de partida é a própria falta essencial do ser, de seus vínculos com o indivíduo agente. A outra noite significa Eurídice duplamente perdida.
Enquanto Orfeu quer “ver” Eurídice invisível, o escritor quer escrever a obra impossível de terminar de ser escrita. O escritor inspirado não poderia colher senão o fracasso de sua experiência com o não-ser, porque ele está sempre proibido de tocar o núcleo originário de sua inspiração:
A inspiração dita a ruína de Orfeu e a certeza de sua ruína, e não promete, em compensação, o êxito da obra, tal como não afirma na obra o triunfo ideal de Orfeu nem a sobrevivência de Eurídice. A obra, pela inspiração, está tão comprometida quanto Orfeu está ameaçado. Ela atinge, nesse instante, o seu ponto de extrema incerteza (Blanchot, 2011, p. 189).
Assim como a música se faz presente nos outros mitos de Orfeu com o objetivo de solucionar suas dificuldades, a relação que ele trava com Eurídice não seria diferente: é uma relação que pertence ao canto, em seu canto ele a possui, no entanto, no seu canto também Eurídice se torna impossível de ser possuída, ela está perdida e ele também está morto, agora vítimas de um morrer infinito. Blanchot interpreta que o “erro” desse herói está em sua impaciência, em sua incapacidade de não conseguir suportar aquela “força sem medida e sem prudência” que tende ao extremo da outra morte. Essa impaciência como erro é também sua maior virtude, a reversão da “verdadeira paciência”.
Orfeu é culpado de impaciência. Seu erro é ter querido esgotar o infinito, pôr um termo ao interminável, não sustentar sem fim o próprio movimento de seu erro. [...] Mas a verdadeira paciência não exclui a impaciência, está na sua intimidade e é a impaciência sofrida e suportada sem fim. A impaciência de Orfeu também é, portanto, um movimento correto: nela começa o que virá a ser a sua própria paixão, sua mais alta paciência, sua morada infinita na morte (Blanchot, 2011, p. 188).
O que há de trágico no mito de Orfeu reside num gesto intensamente apaixonado de olhar, impaciente, aquilo que ele deveria suster com uma paciência interminável para evitar olhar. Paradoxalmente, a “verdadeira paciência” seria uma paciência colocada à prova do sentimento irrefreável da impaciência. Esta não é aquela paciência que procura restabelecer suas relações com o tempo, com o mundo e com o ser, a fim de chegar na realidade de sua potência finita. Implícito no sofrimento de Orfeu está esse “não poder olhar” o fantasma da própria amada, mas é sobretudo necessário ignorar essa proibição. Impacientemente, o herói deve olhar o fantasma de Eurídice presente em seu próprio desaparecimento mórbido e, assim fazendo, traí-la, sendo-lhe, contudo, fiel à verdadeira paciência, fiel ao desejo amoroso e desmedido de encarar o olhar da morte.
Quando “esquece” a lei que o proíbe de olhar a obra de frente, ocasião em que o herói negligencia o canto e se consome de impaciência, Blanchot chama esse momento de “inspiração”. No entanto, tal esquecimento é ambíguo, não é o mesmo que um abandono involuntário. Se o esquecimento faz parte da tendência que recolhe o extremo da atenção da espera e da verdadeira paciência (Foucault, 2009, p. 241) em um ponto de apreensão próprio da natureza da obra de arte, então o olvido se entrega à recusa obstinada das formas singulares, definidas e disponíveis dos objetos, absorvidas todas pelo fundo vazio do esquecimento. A ruína do poeta, portanto, se consuma na inspiração da própria obra de arte, que confronta sua proibição com a exigência de transgredir tal proibição, esquecendo a origem da obra. Eis a desfiguração sem rosto de Eurídice, a imagem invisível de seu não-ser:
Tudo soçobra então, para Orfeu, na incerteza do fracasso, onde, em compensação, só permanece a incerteza da obra, pois a obra alguma vez o será? Diante da obra-prima mais segura, onde brilham o fulgor e a decisão do começo, acontece-nos estar também diante do que se extingue, obra de súbito tornada invisível, que não está mais onde estava, jamais aí esteve. Esse súbito eclipse é a longínqua lembrança do olhar de Orfeu, é o regresso nostálgico à incerteza da origem (Blanchot, 2011, p. 190).
Perder-se na profundeza da noite, insistindo em encarar a essência da noite no ponto em que o desaparecimento dos seres é mais intensa e estranhamente experimentado, não conduziu Orfeu a uma noite mais segura e essencial; ao contrário, conduziu a própria noite ao momento em que ela interrompe sua oposição com o mundo diurno e se perde no que tem de não essencial e irreversivelmente obscuro, onde a obra perde toda garantia, atingindo o ponto extremo da incerteza. Mas o que leva o herói a se consumir de impaciência nesse momento que Blanchot chama “inspiração”? O “desejo” será a resposta; a relação entre a obra e a inspiração é feita de tensão, resistência:
ela [a obra] resiste, com tanta frequência e tanta força, ao que a inspira. Também é por isso que ela se protege, dizendo a Orfeu: Tu só me conservarás se não a olhares. Mas esse movimento proibido é precisamente o que Orfeu deve realizar a fim de levar a obra além do que a assegura, o que ele só pode realizar esquecendo a obra, no arrebatamento de um desejo que lhe vem da noite, que está ligado à noite como à sua origem (Blanchot, 2011, p. 174).
O olhar proibido de Orfeu é um olhar de desejo amoroso, sim, mas na reinterpretação de Blanchot, torna-se um olhar de desejo impessoal por um outro. Nele há uma duplicidade intrínseca ao próprio ato da visão, pois Orfeu está acostumado a olhar o desaparecimento do que ainda aparece e reaparece – olhar que acontece quando, por meio do canto ou das palavras escritas, os “fantasmas” dos objetos ou seres ausentes interagem com os corpos inertes ou viventes. Orfeu, porém, desce ao submundo porque deseja olhar o desaparecimento do que já desapareceu e jamais reaparece. Mas olhar o desaparecimento do que jamais reaparece, esse ato proibido e ao mesmo tempo ambíguo em sua proibição, não passa senão do ponto mais agudo da incerteza da obra, ponto extremo em que o olhar do poeta, composto primordialmente do desejo que vem da outra noite, pertence à condição sem origem da obra.
É como se Orfeu nunca tivesse deixado de olhar Eurídice em sua desaparição perpétua, nunca tivesse deixado de estar presente nesse olhar ausente que é a face indefinida da morte, sem piscar ou hesitar; se não, tudo seria em vão e ele não responderia a esse apelo desmedido que vem da alteridade e da obscuridade extremas.
No desfecho do mito de Orfeu, há ainda seu sofrimento terrível após o retorno do Hades e consequente despedaçamento de seu corpo por mulheres trácias, que se sentiram ultrajadas pela rejeição sistemática que Orfeu impunha às suas investidas amorosas. Num acesso de fúria excitada por Dioniso, elas decidem esquartejar o desafortunado herói e espalhar seus pedaços, lançando sua cabeça em um rio. Elas apenas colocaram fim simbólico à sua existência singular já apagada, mas não colocaram fim ao seu pranto que, ainda na forma de canto, saía da cabeça decepada de Orfeu flutuando sobre a corrente do rio.
A literatura possui um destino parecido: também a obra literária se fragmenta e existe como que espalhada, estilhaçada, e o escritor nunca cessa de a evocar em todos os seus escritos, e em todos ele apenas confronta o fantasma da obra, nunca a obra em sua plenitude. Por causa do deslocamento que o mito toma nessa incursão pelos mistérios da literatura, há um esforço na reinterpretação de Blanchot de articular a questão da inspiração com a impaciência de um desejo despreocupado que liberta a preocupação com a obra. Eis o dilema da possibilidade da morte e a condição de perda de origem da obra poética.
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. de Á. Cabral. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011.
FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. de I. A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009.
MARQUES, Elisabete. Maurice Blanchot e a exigência fragmentária. Revista Outra Travessia. UFSC, n. 18, pp. 87-104, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/2176-8552.2015n18p67/29456. Acesso em: 12/05/2023.
SOBRE O AUTOR
Felipe Almeida de Camargo é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UEM, com dissertação intitulada Morte silenciosa em Maurice Blanchot: a experiência-limite da literatura como impossibilidade de morrer.