LITERATURA
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Uma chave de leitura para o Ájax de Sófocles
Quando morre Aquiles, o maior dos guerreiros aqueus, suas armas são postas em disputa pelos outros combatentes. No páreo estão Ájax e Odisseu, o primeiro representando a orgulhosa força bruta e descomedida, de fato tão semelhante a Aquiles, e o segundo representando qualidades de combate menos excelsas, entretanto mais astuciosas. Os chefes dos argivos decidem destinar as armas para Odisseu. Ájax, sentindo-se desonrado, planeja vingar-se matando todos os seus companheiros. Atena, no entanto, o ludibria e faz com que ele ataque um rebanho crendo atacar os gregos. Aqui começa a peça Ájax de Sófocles (V a.C.). O protagonista irá descobrir que foi enganado e desonrado por Atena. Odisseu se compadece de sua dor. Ájax se suicida a despeito das súplicas de sua cativa de guerra, Tecmessa, com quem tem um filho chamado Eurísaces. Os atridas, morto Ájax, intentam ultrajar seu cadáver. Teucro, meio-irmão de Ájax, luta em vão pelo direito de sepultá-lo. Odisseu enfim intercede e convence os chefes aqueus a darem permissão para o sepultamento.
A peça, considerada a mais antiga dentre as sete tragédias de Sófocles que chegaram até nós, foi tida pela crítica em geral como defeituosa do ponto de vista dramático, ou melhor, anticlimática. O protagonista morre no meio da peça e o texto transcorre ainda longamente a tratar dos seus funerais, dissolvendo assim o efeito trágico ao final da peça. Kitto, contudo, constatou que havia um sentido mais profundo por trás das escolhas do enredo e propôs uma análise brilhante que reabilita seu valor: não há unidade de ação, mas há unidade temática. A unidade da peça realiza-se ao redor da indagação ética de como se deve viver a vida diante de um mundo tal como representado na peça. Nesse sentido, cada um dos personagens principais representaria modelos de comportamento humano diante da instabilidade e fragilidade da vida humana.
Como? Analisemos diretamente os personagens.
Na peça, Odisseu é pio, prudente e modesto. Enquanto Ájax estava ensandecido torturando animais domésticos como se fossem homens, Atena mostra a Odisseu seu oponente e o convida a regozijar por sua vitória, rindo da desgraça do inimigo. Ájax havia reservado um tratamento especialmente cruel para Odisseu, planejando torturá-lo longamente antes da morte. Mas Odisseu, que assiste ao horrendo espetáculo, replica, consternado: “compadeço-me dele, o miserável, ainda que seja meu inimigo, porque está subjugado por extravio nefasto — em nada considerando mais sua sorte do que a minha, pois vejo que nós nada mais somos do que fantasmas, quando vivemos, ou sombras leves” (Aias, v. 121-126). Ao contrário da expectativa de todos os personagens durante a peça, Odisseu não sente prazer com a queda de Ájax. Vendo o quão fácil os deuses o reduzem a nada, sente em si próprio a fragilidade que assiste no inimigo. Diante da instabilidade trágica, Odisseu se porta de modo prudente e compassivo. É difícil não ver em Odisseu um tipo humano superior, que se destaca pela consciência que tem do funcionamento do cosmos e do lugar que ali ele deve ocupar. É o herói da prudência e da piedade na peça. Odisseu se destaca como um modelo pedagógico, como se Sófocles estivesse nos mostrando a apropriada postura que um homem deveria ter diante do acontecimento trágico. E mais: Odisseu parece um espectador ideal da tragédia. Assim como assistimos a desgraça de Ájax, também Odisseu a assiste de forma privilegiada, ocultado por Atena, como um espectador.
Ájax, por sua vez, não representa um simples insensato em contraposição à sabedoria de Odissseu. Sua grandeza é evidente, talvez superior à de Odisseu na dignidade com que afirma a vida em seus próprios termos. Mas Ájax é um personagem desmedido, orgulhoso, adepto de valores antigos (sobretudo inadequados ao valores democráticos de onde parte Sófocles em seu contexto). Frustrado em sua tentativa de vingança, Ájax é assim desonrado uma segunda vez ao atacar animais indefesos e se torna alvo do escárnio de seus inimigos. Odiado por toda a tropa e por Atena, opta pelo suicídio. Tecmessa, sua companheira, implora para que ele viva e não a abandone nem a seu filho nas mãos de inimigos. Ájax a repreende friamente. Firme em seu propósito, se suicida, após reconhecer e rejeitar a instabilidade deste mundo.
Ájax é grande, mas de uma grandeza monstruosa e desmedida que não deve ser imitada — o seu próprio destino nos diz. No entanto, após reconhecer a instabilidade do mundo, tal como Odisseu a reconheceu e a aceitou, em vez de sensatamente prostrar-se a seus pés, Ájax se mata negando o mundo tal como ele é. Não podendo continuar a viver uma vida valorosa, morre de forma valorosa. Perdendo sua dignidade no primeiro ato, Ájax a reconquista com seu suicídio. O dominador Ájax mostra que não há domínio que possa exercer seu poder sobre ele. Mostra que é inexoravelmente livre, livre inclusive para atirar seu corpo contra uma espada.
Eis então dois modelos de grandeza humana, duas formas de se comportar diante da instabilidade do mundo. Uma sábia, outra grandiosa. Após a morte do herói, o poeta nos mostra outra forma ainda, dessa vez mesquinha e insensata, representada pelo par Menelau e Agamêmnon. Eles entram em cena porque desejam ultrajar o cadáver de Ájax e impedir seu sepultamento. Assim como os dois primeiros, eles reconhecem a instabilidade do mundo, como demonstra Menelau (Aias, v. 1077-1088):
Um homem deve, mesmo se desenvolver corpo grande,
saber que pode cair mesmo por mal pequeno.
Fica sabendo que salvação tem aquele
que acompanham temor e vergonha juntos;
onde é permitido exceder-se e fazer o que quiser,
considera que esta cidade, com o tempo,
depois de sob aura singrar, no pélago cai!
Mas quero que se estabeleça um temor oportuno!
E não julguemos que fazendo o que amamos
não pagaremos de volta com o que detestamos!
Seguem alternadas essas coisas. Antes ele era
inflamado e insolente; agora é minha vez de pensar grande.
É curioso: Menelau enuncia o essencial da sabedoria trágica, palavras que Odisseu poderia ter dito. No entanto, sua conclusão diverge radicalmente. Diante da alternância da sorte e da instabilidade das coisas, Menelau não se mostra sensato e prudente, e sim um aproveitador insolente dos mecanismos do destino. Sua crença é que se deve alternadamente ser soberbo e modesto, a depender dos favorecimentos da sorte. Se Odisseu não ri do inimigo caído por saber que o mesmo poderia lhe acontecer, Menelau aproveita a oportunidade como a um direito. A estreiteza do pensamento de Menelau e Agamêmnon é tão evidente se comparado ao de Odisseu que eles nos soam ridículos. Representam, em suma, a vulgarização oportunista da mais profunda sabedoria trágica.
Odisseu é sábio e prudente, aquele em quem devemos nos espelhar. Ájax é majestoso, admirável e temível ao mesmo tempo, porém inadequado e desmedido. Os atridas são criaturas torpes e diminutas que devem ser desprezadas. O que une esses personagens é que todos reconhecem a instabilidade da vida humana, embora reajam de formas diferentes a ela. Como propôs Kitto (2021, p. 158), “a peça quase formula a questão socrática: πῶς δεῖ ζῆν, ‘como havemos de viver?’”.
Ájax, como poucas tragédias, parece expressar a um só tempo uma visão trágica de mundo e uma sabedoria correspondente ao lugar dos homens nesse cosmos. Parece que Sófocles propositalmente privilegiou a exposição desse tema em torno dos personagens, em detrimento da construção de um enredo dramaticamente perfeito — como já o vimos habilmente fazer outras vezes (no irretocável Édipo rei, por exemplo). Apesar de a interpretação de Kitto ser contestável, como o foi por um ensaio de Bernard Knox (2022), acreditamos que o helenista cumpriu o papel de desvelar o brilho originário da peça e reapresentar aos nossos olhos contemporâneos toda a proeminência da tragédia grega em seu sentido mais medular.
REFERÊNCIAS
KITTO, Humphrey Davy Findley. A Tragédia Grega. Tradução de J. M. C. Castro. Lisboa: Edições 70, 2021.
KNOX, Bernard. O Ájax de Sófocles. In: SÓFOCLES. Ájax. São Paulo: Editora 34, 2022.
OLIVEIRA, Flávio Ribeiro de. Apresentação. In: SÓFOCLES. Aias. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SÓFOCLES. Aias. Tradução de F. R. Oliveira. São Paulo: Iluminuras, 2008.
SOBRE O AUTOR
Matheus Oliveira Pinheiro da Silva é graduado em Filosofia pela UEM.