TEORIA LITERÁRIA
TEORIA LITERÁRIA
Mitos e poesia brasileira contemporânea: primeiros acercamentos
Os primeiros indícios de que o ser humano interpreta o mundo simbolicamente remontam à pré-história. Escavações em sepulturas revelam um cuidado especial com os mortos; a pintura dos ossos, a posição fetal e outros detalhes evidenciam uma intenção ritualística dotada de simbolismo em torno da morte e do luto. As estruturas simbólicas se manifestam na história por meio de imagens pictóricas, esculturas, ritos, cantos e danças, teatro, além da linguagem falada e escrita. Antes mesmo de se apossar do domínio da tecnologia da escrita, a comunicação se deu por sons e gestos que, segundo Vico (2005, § 365), deram origem a uma primeira forma de poesia e conhecimento. A partir da nomeação da natureza e de si mesmo, o ser humano tomou consciência de que a palavra lhe conferia poder sobre esses seres, conquanto dar um nome era exercer domínio sobre o que se nomeava, tornando-o presente mesmo na ausência: “símbolo e significado constituem o mundo do homem, muito mais do que a sensação. [...] A melhor garantia de sua função essencialmente simbólica é a tendência para se tornarem metafóricas” (Langer, 1971, p. 39; p. 150).
Poesia e mito, na condição de simbolicidade, constituem um élan arquetípico e atemporal, tão antigo quanto o nascedouro e os desdobramentos das duas noções que se interpenetram na história da literatura ocidental. As imagens míticas são fontes de associações que constantemente renovam seu valor simbólico por meio da imaginação criadora, constituindo verdadeiros mitemas (Durand, 1989): imagens que indiciam o imaginário recorrente de poetas. A análise e interpretação desse arcabouço mítico abre-se a uma variedade de correspondências intertextuais evocadas pelas imagens do texto poético e sua produção de sentidos. A presença dos deuses, anacronicamente retomada em tempos de crise, quando a pós-modernidade parece ter encurralado o mito na obsolescência, parece apontar para um desejo de retorno ao passado, às origens, à arché. A relevância dos mitos e sua representação literária evidenciam as amplas possibilidades de adaptação no interior dos gêneros, desde a Teogonia, de Hesíodo, passando pelas epopeias de Homero e as tragédias, no mundo antigo. Originando-se na oralidade, os mitos foram, em um certo momento histórico, registrados por escrito e, posteriormente, incorporados especialmente como conteúdo temático dos gêneros literários, entre eles, o épico, o dramático e o lírico, mantendo sempre sua força e vitalidade mitológicas.
Para Campbell (2002, p. 239), a mitologia tradicional teria quatro funções. São elas a mística ou metafísica, a cosmológica, a sociológica e a psicológica, sendo esta última a que sustentaria todas as outras e moldaria “os indivíduos às metas e ideais de seus vários grupos sociais”, integrando-os nas respectivas sociedades ao longo da vida. Tal estrutura pode ser reconhecida na produção poética, como sugere Paz (2012, p. 70), ao propor que “nem todos os mitos são poemas, mas todo poema é mito.” Com isso, o poeta sugere que o que designamos de mito está visceralmente ligado a uma forma de existência que é essencial à imaginação, ao pensamento, à linguagem. Nesse sentido, poesia e mito conectam-se por uma gama de imagens que, em correspondência com a materialidade da palavra poética, atualizam e espraiam o horizonte simbólico da linguagem (Jesi, 1988, p. 20). Convém lembrar que uma das acepções do léxico mythos (μῦθος) é simplesmente “palavra” (Malhadas, Dezotti & Neves, 2022, p. 696). Há uma “palavra” no princípio de tudo, a pronunciar o mundo, tornando-o humanizado, estuante de sentido, visto que o ato de criar é poiesis, é poético: “É na linguagem que o cosmos, o desejo, o imaginário têm acesso à expressão; é sempre preciso uma palavra para recuperar o mundo e fazer com que ele se torne hierofania” (Ricoeur, 1988, p. 15). A palavra poética, portanto, produz hierofania, ou seja, presentifica o mito, carregando sua semântica e sua semiótica de conotações afetivas e polissêmicas.
Dessa forma, poesia e mito abrangem uma totalidade não apreensível de modo direto e imediato pela consciência discursiva racional. Grosso modo, porque ambos, poesia e mito, recorrem ao símbolo, ao arquétipo, à ambiguidade da linguagem; daí decorre a plenitude de sua sedução, resquício e atualidade (Ramnoux, 1977, p. 27). Não se trata, no entanto, de uma adesão ingênua aos deuses arcaicos, mas de perquirir uma “segunda ingenuidade”, que os reabilita como detectores da realidade humana; e, ao serem interpretados, apresentam novos matizes de compreensão (Ricoeur, 2013, p. 110). Mito e poesia contemplam uma verdade, mas não uma verdade imediata e evidente para a razão discursiva. A força dessa verdade nos polariza – e essa é a sua manifesta sedução. Com efeito, a busca pela verdade simbólica requer esforço, refinamento e decifração, no caso do mito e sua mensagem. Somos todo mundo um pouco edipianos, sob pena de sermos devorados ou adentrarmos Tebas. O acesso a essa verdade nunca é totalmente garantido; durante a busca, podemos nos perder, o que permite que o mito adquira e veicule um sentido pejorativo de engano ou mistificação ideológica, como destaca Cassirer (2003, p. 336), ao abordar o mito político do nazismo. Nossa história recente, a seu modo, apontou o denominador comum do irracionalismo como um dos aspectos tenebrosos que o mito pode assumir, ao se ouvir pelas ruas “Mito! Mito!”, utilização político-ideológica e passional que, a despeito da liberdade de expressão de voto, revelou o lado obscuro da valorização desmedida, verdadeira hybris do poder do mito na política à brasileira. Esse sentido se aproxima em parte da visão de Barthes, em sua obra Mitologias, da década de 1950, na qual lança um olhar sobre o mito à luz das implicações do pós-guerra. Barthes (2001, p. 131) contempla na permanência do mito no século XX uma distorção, uma deformação da realidade, uma ideologia que atravessa a linguagem. O mito não nega a existência das coisas; ao contrário, torna-as inocentes, conferindo-lhes uma significação natural e eterna, mediada por seu caráter imperativo.
Importa-nos, entretanto, nos limites e despretensão do conjunto de ensaios que veicularemos aqui, o desvelamento de outro sentido do mito, qual seja, o que opera na decifração invulgar da realidade essencial da experiência humana, dado que o mito, fundamentalmente ligado à linguagem poética, exemplifica nossos enraizamentos menos confessáveis, como propõe Martinon (1977, p. 127). Nessa perspectiva, o mito não é tomado como um modo de pensar ingênuo, falsa crença, mas como agenciador da atividade criadora e imaginativa, poética, valorado como figura e, especialmente, como uma crítica ao sujeito, um momento de auscultamento de si mesmo (Ricoeur, 1988, p. 19). A poesia emerge desse aprendizado humano como uma função mágica que permite a transformação da realidade, como aponta Thomson (s.d., p. 20), ao dizer que “a poesia exerce uma função mágica, visando modificar, de alguma forma, o mundo exterior por meio de um fenômeno de mimesis, isto é, busca impor a ilusão sobre a realidade”.
Nessa via, buscaremos entender os modos de representação do mito na poesia brasileira contemporânea, considerando-se, especialmente, duas linhas de força que aventamos ser paradigmáticas: amor e erotismo, de um lado; morte e luto, de outro. Elencaremos um conjunto de poemas e poetas cujas obras colocam em evidência a revisitação e releitura do mito, especialmente Alexei Bueno, Hilda Hilst, Dora Ferreira da Silva, Carlos Drummond de Andrade, Sebastião Uchôa Leite, Prisca Agustoni, entre outros nomes. A abordagem pretende dar-se através de operadores de leitura analítica advindos de diferentes abordagens teóricas, incluindo processos poéticos e intertextuais, dialogismo, tradução intersemiótica/intermidiática, estudos interartes, estudo do mitema, do mito e da mitologia, entre outros que rendam boas análises.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. R. Buongermino e P. Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003a.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Trad. J. Guinsburg e M. Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2003b.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.
JESI, Furio. O mito. Lisboa: Editorial Presença, 1988.
LANGER, Susane Katherine. Filosofia em nova chave: um estudo do simbolismo da razão, rito e arte. Trad. J. Meiches e J. Ginzburg. São Paulo: Perspectiva, 1971.
MALHADAS, Daisi; DEZOTTI, Maria Celeste Consolin; NEVES, Maria Helena Moura. Dicionário grego-português. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Araçoiaba da Serra, SP: Mnema, 2022.
MARTINON, Jean-Pierre. O mito da literatura. In: LUCCIONI, Gennie et alli. Atualidade do mito. Trad. C. A. R. Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 121-134.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. A. Roitman e P. Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
RAMNOUX, Clémence. Mitológica do tempo presente. In: LUCCIONI, Gennie et alli. Atualidade do mito. Trad. C. A. R. Nascimento. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 17-28.
RICOEUR, Paul. A simbólica do mal. Lisboa: Edições 70, 2013.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Trad. S. Correia. Porto: Editions du Seuil, 1988.
THOMSON, George. Linguagem e magia. In: Marxismo e poesia. Portugal: Teorema, s.d.
VICO, Giambattista. Ciência nova. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005.
SOBRE O AUTOR
Sandro Adriano da Silva é professor da UNESPAR, onde ensina Literatura Brasileira. Desde 2022, desenvolve tese de doutoramento pela UFPR, com o título Figurações da poesia elegíaca de Hilda Hilst.