LITERATURA COMPARADA
LITERATURA COMPARADA
A tragédia da imortalidade no conto O Imortal, de Machado de Assis
A Antiguidade Clássica exerce imensa influência em toda a arte ocidental e podemos observar seu impacto na obra de um de nossos maiores escritores: Machado de Assis. O teórico Jacyntho Brandão, no texto “A Grécia de Machado de Assis”, disserta sobre essa influência e compara o Bruxo do Cosme Velho ao poeta Luciano de Samósata (II d.C.) no uso do humor e da ironia. Ademais, nos títulos de diversas obras podemos encontrar referências clássicas, como no romance Helena, que faz referência a Helena de Tróia, ou nos contos Lágrimas de Xerxes e A Visita de Alcibíades. A intertextualidade com Grécia e Roma está muito presente em todo o conjunto da obra do autor carioca, de modo que, depois da Bíblia, os textos antigos são os mais citados, direta ou indiretamente, por Machado (Brandão, 2001-2002, p.127). Neste artigo, pretendemos discutir a influência grega na literatura machadiana, tendo como foco a produção literária de contos fantásticos do autor.
Muitos leitores não sabem, mas Machado de Assis vai muito além do tradicional realismo e possui grande versatilidade como escritor. Ele escreveu uma série de contos fantásticos, que brincam com a noção do real e do imaginário. Mas o que é a narrativa fantástica? De acordo com a maioria dos teóricos, o fantástico surgiu no século XVIII, mais conhecido como Século das Luzes, que foi marcado pela ascensão das teorias científicas e por uma visão racionalista da realidade. O fantástico surge justamente para confrontar essa visão de mundo e questionar a concepção racionalista da realidade.
As histórias fantásticas sempre se passam em um mundo muito semelhante ao nosso, com a mesma lógica, até que alguma coisa extraordinária, que foge às leis vigentes, acontece e gera um choque entre o natural e o sobrenatural. Esse choque causa nos personagens e no leitor o que o teórico Tzvetan Todorov (2006, p.148) vai chamar de hesitação, ou seja, vai levar ao questionamento da natureza daqueles fenômenos insólitos. David Roas (2014, p.110-111), por outro lado, em sua obra “A Ameaça do Fantástico”, caracteriza o fantástico como uma literatura que confronta nossa percepção do real, de forma a ameaçá-la. Sendo assim, o fantástico é essa literatura que traz o confronto entre o comum e o incomum, repleto de incertezas e muitas vezes capaz de provocar uma sensação de pavor, ou ao menos questionamento diante do insólito.
Machado de Assis abraça diversas das características do fantástico tradicional europeu, como o uso de ambientes domésticos e a ambientação soturna, porém também o subverte através do uso do humor, da ironia e da crítica. Geralmente, em seus contos, o fantástico recebe explicações racionais no desfecho (sonho, loucura, uso de drogas, etc.), outras vezes, por se apresentar através da contação de casos, do relato de uma testemunha, relativiza-se sua veracidade e o leitor e os ouvintes ficam sempre diante de um impasse, de credulidade ou incredulidade quanto aos fatos. Esse é o caso de O Imortal, que apresenta Dr. Leão, um homem que jura ter um pai imortal (Rui), empenhado em contar esse prodígio para um tabelião e um coronel.
O Imortal é um conto interessante para a análise das influências gregas em Machado, pois ele discute justamente a condição de nunca morrer e, ao fazer isso, Machado utiliza os mitos gregos através de comparações. Na história, Rui Leão, o pai do doutor, bebe um elixir dado por um cacique indígena que o torna imortal. A partir disso, ele vive diversas aventuras ao longo dos séculos e influencia eventos históricos desde 1600 até o século XIX. O personagem vai, de fato, perceber que está preso à vida, quando, em uma ocasião, ele é condenado à morte por conspiração política e a lâmina do carrasco não o mata.
Esse evento gera uma grande comoção entre as pessoas, que começam a vê-lo como um ser extraordinário. “Um poeta chamou-me de Anteu”, ele diz, alusão bastante interessante, pois Anteu, na mitologia grega, era um gigante que não podia ser morto enquanto estivessse em contato com sua mãe, Gaia, a terra; ele era vulnerável apenas quando levantado no ar. Isso revela a intertextualidade ao notarmos que Rui Leão também tem ligação com Gaia: ele é imortal, logo, fadado a morar sobre a terra para sempre, e não há uma existência concebível para o personagem além dessa.
As comparações com figuras gregas não param por aí, pois Rui Leão também é comparado ao personagem trágico Prometeu. Essa comparação aparece logo após o protagonista ser preso pelo Tribunal do Santo Ofício, por culpa das acusações que um rival político fez contra ele. “A prisão perpétua para ele devia ser a cousa mais horrorosa do mundo. Prometeu, o mesmo Prometeu foi desencadeado”. O filho de Rui Leão, que narra a história, diz que explicará quem é Prometeu ao tabelião depois, sugerindo que este ouvinte o interrompeu para perguntar.
Prometeu, na cultura grega, é o titã que roubou o fogo, que era de posse exclusiva dos deuses, e o doou para a humanidade, permitindo que ela se desenvolvesse. Por tal afronta, Zeus prende Prometeu em uma rocha, enredo que podemos ler em Prometeu Acorrentado, de Ésquilo. Na tragédia, Prometeu se lamenta de sua condição: ele é um imortal condenado à solidão e ao sofrimento, sofrimento esse que não pode ser nem ao menos aliviado pela morte. Essa situação remete claramente à do próprio imortal, que, depois de anos vagando pela terra, começa a se sentir sozinho, sem propósito e tenta se matar diversas vezes, mas nunca consegue. A imortalidade se torna o suplício de Rui, assim como ela prolonga o sofrimento de Prometeu, que na peça de Ésquilo ainda recebe a condenação de ter seu fígado comido pela águia de Zeus dia após dia, só para seu corpo se regenerar e ele sofrer de novo.
Prometeu, porém, é libertado por Héracles depois de tudo, como podemos saber a partir dos fragmentos de outra peça de Ésquilo (Prometeu Libertado). Diante desse fato, o narrador dramatiza a situação de Rui Leão, pois até Prometeu obteve salvação, mas ele estaria condenado à prisão perpétua sem perspectiva nenhuma de libertação. Acontece que os pensamentos de Leão estavam errados e ele acaba sendo libertado também, com a ajuda de uma de suas amantes.
No final do conto, Rui Leão finalmente passa a valorizar a mortalidade e acaba optando por ela quando descobre que, se ele tomasse outra dose do elixir, o efeito se anularia. O homem que viveu boa parte de sua vida como imortal fala que essa condição antinatural lhe tirou todos os prazeres da existência e todas as pessoas que ele amou. Essa reflexão se alinha àquela de Odisseu na ilha de Calipso, quando o herói recusa a imortalidade oferecida pela deusa, preferindo sua vida curta de mortal, e decide então retornar a Ítaca, onde poderia viver os prazeres da vida humana com sua esposa Penélope e seus familiares.
O Imortal, de Machado de Assis, finaliza com a morte de Rui Leão e com um questionamento inquietante sobre as palavras narradas. Os ouvintes, que começaram o conto céticos, passam a acreditar na história, enquanto outros desconfiam de sua veracidade, instaurando a hesitação própria do conto fantástico, de forma que o final abre para interpretações por parte do leitor.
É importante observarmos como Machado de Assis retoma os elementos greco-latinos para acrescentá-los às questões que suas obras propõem, ampliando o debate e gerando novos sentidos. Isso também ocorre em outros contos fantásticos, como em A Decadência de Dois Grandes Homens, no qual Machado traz a Roma Antiga como temática para o fantástico ou A Vida Eterna, no qual o autor discute novamente a imortalidade, utilizando-se de paralelos com a cultura grega. Portanto, da próxima vez que você ler Machado de Assis e encontrar alguma referência à Antiguidade, pare e analise, pois ela pode esconder uma gama de significados, seja na construção dos personagens ou na discussão de temáticas atemporais.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Contos fantásticos de Machado de Assis. Seleção e apresentação de Raimundo Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Bloch, 1973.
BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Grécia de Machado de Assis. Kléos: Revista de Filosofia Antiga. Rio de Janeiro, volume 5-6, n. 5-6, p.125-144, 2001-2002.
ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1993.
ROAS, David. A ameaça do fantástico. Tradução de Julián Fuks. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Leila Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.
SOBRE A AUTORA
Laís Gama Hernandes Luiz é aluna do terceiro ano de Letras na UEM, com pesquisa em andamento intitulada "Os ecos gregos nos contos fantásticos de Machado de Assis", sob a orientação do professor Luiz Carlos André Mangia Silva.