RESENHA
RESENHA
Se piscar, tudo será em vão: "O olhar de Orfeu" de Maurice Blanchot (Parte I)
De maneira insuspeita, algumas vezes imprevisível e surpreendente, os antigos mitos gregos reaparecem fora do tempo e do mundo em que surgiram, ainda que o papel social e o sentido religioso que antes possuíam sejam deslocados, modificados profundamente, ou então arruinados e perdidos completamente. O filósofo contemporâneo Maurice Blanchot nunca se cansou de escrever sobre a possibilidade da literatura. Ao especular acerca da “inspiração” ligada à produção da obra de arte literária, Blanchot escolhe um mito grego a fim de dar forma à intuição que reside em seu estudo O espaço literário, publicado em 1955. Trata-se do mito de Orfeu e Eurídice, a partir do qual o filósofo tenta nos alertar para a incerteza, a perdição e a desdita implicadas na questão da possibilidade da literatura.
Esse mito é mencionado nas páginas sinuosas que descrevem a natureza do espaço literário, cumprindo um papel e um sentido determinados, a saber: explicar a “inspiração artística”, expondo a relação entre o poeta inspirado, aquele que sai à caça de seu grande amor – a obra de arte – e a própria obra de arte, cujo olhar o poeta não pode encarar diretamente; ao mesmo tempo, ele não pode, demorando-se muito mirando seu vulto, evitar olhá-la, o que, no limite, seria trair a obra de arte. Essa condição assume a forma de um paradoxo. Tudo se inicia com uma caçada noturna: “Quando Orfeu desce em busca de Eurídice, a arte é a potência pela qual a noite se abre” (Blanchot, 2011, p. 171).
No cair interminável da noite, Orfeu desce às entranhas profundas do submundo: ao mundo dos mortos ele desce desesperadamente à procura de Eurídice, assim como o poeta se lança desesperadamente ao extremo mais perigoso da arte. O mito de Eurídice e Orfeu é reelaborado por um vocabulário e um contexto especiais, ou com mais acerto: espaciais. No Espaço literário, as questões filosóficas acerca da possibilidade da escrita literária e da possibilidade da morte do ser finito se encontram e se entrelaçam num mesmo campo especulativo. Na epígrafe dessa obra, Blanchot escreve: “quando se trata de um livro de esclarecimentos, há uma espécie de lealdade metódica a declarar na direção do ponto para o qual parece que o livro se dirige: aqui, na direção das páginas intituladas O olhar de Orfeu.” (2011, p. 7)
Este “ponto para o qual parece que o livro se dirige” é o espaço por excelência em que se desvela a visão do invisível. A entrada no espaço literário, mediada pelo ensaio de Blanchot, também seria uma “descida órfica” aos infernos, no ponto extremo em que se abre a perspectiva e se prova da gravidade da experiência com a escrita literária, abraçada por um olhar suspenso no seio do que há de mais sombrio na existência.
Orfeu, um poeta trácio da mitologia grega, encaminha-se ao reino do submundo, ao Hades (nome tanto do deus quanto do lugar onde ele reina). “Hades” (Ἅιδης), na língua grega antiga, significa “invisível”. Orfeu se lança a um reino invisível, separado do mundo da vida, uma região morta em que vaga o espectro que outrora animava um corpo vivo. No extremo dessa dimensão angustiante, o poeta fixa seu olhar e se arrisca, tomado por uma obsessão fadada ao fracasso, pois Orfeu prega o olhar em Eurídice, ou melhor, em sua sombra: ele prega o olhar na dimensão de sombras em que é impossível olhar, porque nada está visível.
O Orfeu de Blanchot deseja adentrar, por meio de seu canto, de sua obra, no coração da noite, mas não da “primeira noite”, que é, segundo o autor, a contraface do dia em que ainda se encontra regularidade, acolhimento e intimidade, dispondo inclusive de poder sobre a morte, desejando-a, preparando-a, trabalhando para sua efetivação desde o reino obscuro das possibilidades para o reino claro da atualidade, naquela noite em que a morte é certa e pode ser decidida porquanto pertence ao domínio do homem.
Na noite tudo desapareceu. É a primeira noite. Aí se avizinham a ausência, o silêncio, o repouso, a noite. Aí, a morte apaga o quadro de Alexandre, aí aquele que dorme não o sabe, aquele que morre vai ao encontro de um morrer verdadeiro, aí se realiza e se cumpre a palavra na profundidade silenciosa que a garante como o seu sentido. (Blanchot, 2011, p. 163)
Na verdade, Orfeu deseja a outra noite, aquela em que falta um avesso do dia e a morte não encontra a possibilidade de ser efetivada, numa noite em que a morte é incerta, vítima de uma estranheza dilacerante. Ora, o espectro de Eurídice está logo ali, a tarefa de Orfeu consiste em acompanhá-lo, pregando o olhar apenas em sua sombra, guiando-a de volta à região média do mundo dos vivos. Mas ao mesmo tempo, Eurídice já não pertence ao mundo de Orfeu, ela não está literalmente ali e não se sabe se ela poderá, tal como Sísifo, retornar. Eurídice se torna, portanto, o extremo da experiência noturna, “o ponto profundamente obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo, a morte, a noite. Ela é o instante em que a essência da noite se aproxima como a outra noite” (Blanchot, 2011, p. 171; grifo do autor).
Desse ponto profundamente obscuro Orfeu desvia com sua obra, não se demorando na sua profundidade; na verdade, sua obra consistiria em retirar esse ponto extremo da noite e o conduzir à luz do dia, onde tomaria forma e identidade. A tarefa de Orfeu estará cumprida nesse desvio e nessa elevação do mistério que é Eurídice, a obra de arte. No entanto, há uma condição bastante controversa para essa tarefa. Orfeu não deve encarar o mistério naquele ponto mais profundo e obscuro, ele está proibido de olhar a sombra de Eurídice enquanto ela o acompanha, de modo que o artista não deve saber o que é a poesia, a matéria mesma de sua obra, da qual ele, empenhando em fazê-la a todo custo, esquece.
Mas Orfeu, no movimento de sua migração, esquece a obra que deve cumprir, e esquece-a necessariamente, porque a exigência última do seu movimento não é que haja obra mas que alguém se coloque em face desse ‘ponto’, lhe capte a essência, onde essa essência aparece, onde é essencial e essencialmente aparência: no coração da noite. (Blanchot, 2011, p. 171-2)
Eis no que se converte a missão de Orfeu: olhar a noite no coração da noite, lá onde a arte se encontra integralmente visível, no extremo reino invisível da imaginação, em que a oposição entre essência e aparência perde o efeito, e a essência da arte se torna “essencialmente aparência” em um momento privilegiado da experiência do poeta. O mito de Orfeu, numa primeira instância, ajuda a pensar no poeta como alguém que, para manter-se fiel àquela que ele ama perdidamente e que por conta disso se sacrificou, precisa, contudo, traí-la, tornando inútil toda a dor de seu próprio sacrifício. Mas é apenas por conta dessa traição inevitável que seu sofrimento ganha sentido e se justifica. Pois não era o retorno da vida de Eurídice que, segundo Blanchot, Orfeu foi buscar no Hades, mas sim o avivamento pleno de sua morte. (Continua na próxima edição.)
REFERÊNCIA
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011.
SOBRE O AUTOR
Felipe Almeida de Camargo é aluno do mestrado em Filosofia da UEM, com pesquisa intitulada “Morte silenciosa em Maurice Blanchot: a experiência-limite da literatura como impossibilidade de morrer”.