TRADUÇÃO
TRADUÇÃO
Tradução comentada de um poema de Safo (31)
Safo é o nome da mais famosa poetisa da Grécia antiga. Viveu na ilha de Lesbos e destacou-se por seus versos de amor, que manifestam amiúde um forte erotismo entre personae femininas. Por esse motivo, seu nome é evocado (melhor, sua ilha) para qualificar modernamente um tipo de amor específico, o amor lésbico. Safo viveu entre 630 e 580 a.C. e foi muito reconhecida por sua poesia, tanto entre os autores gregos (Platão elegeu-a como a décima Musa) quanto romanos (Catulo imitou-a com orgulho).
É preciso estabelecer a diferença entre quem fala na poesia e a pessoa histórica e considerar que a poética antiga, muitas vezes mais do que outras, vale-se de diferentes recursos tradicionalmente conhecidos, envolvendo desde o tipo de verso adequado a certo tema, o vocabulário específico, a música (perdida para nós), o público almejado, a ocasião de execução - tudo isso, somado, constitui o horizonte de expectativas ligando o poeta e sua audiência; na verdade, é o que garante que a poesia seja apreciada de fato, por meio da performance. Ora, não reapresentar o material construído pela tradição, deixar de fazer mímesis das vozes do passado, constitui um erro, uma ferida no pacto entre poeta e audiência.
Constrangido por seus materiais, quem compõe compõe antes para o outro, mais do que para si ou por uma necessidade de expressão pessoal ou intimista. Isso deve nos prevenir quanto à leitura biográfica dos versos de poetas antigos. Outro elemento que deve ser levado em conta é o estado da obra que nos chegou: de Safo, se havia nove livros guardados na Biblioteca de Alexandria, nós conhecemos apenas cerca de 200 fragmentos de poemas, empecilho enorme para uma visão íntegra de sua poética.
Na dialética entre tradição versus expressão pessoal (entendida não como manifestação do “eu” individual, particular, mas de identidade estética, de uso inovador de elementos tradicionais), é preciso afirmar que Safo, a despeito do estado reduzido de sua obra, faz uso singular dos materiais disponíveis e sua poesia é facilmente reconhecível: seu tema obsessivo é o amor, sua deusa predileta é Afrodite (e Eros), seu interesse a emoção amorosa, seus efeitos, seu lugar na vida das personae poéticas. Safo é sem dúvida uma das melhores expoentes da poesia de amor.
Já dispomos de várias traduções de Safo em português. Destacaria três, todas elas bilíngues, realizadas por pesquisadores ligados à Universidade Pública Brasileira: a tradução (da obra integral) de Guilherme Gontijo Flores (Editora 34, 2017), a tradução de Giuliana Ragusa (Hedra, 2011) e a de Joaquim Brasil Fontes (Estação Liberdade, 1992). Para a tradução que proponho abaixo, consultei todas estas fontes, além de mais duas: Péricles Eugênio da Silva Ramos (Poesia grega e latina. São Paulo: Cultrix, 1964) e André Malta ("Re-visão do amor em Safo ou Safo para além de Safo". Anais de Filosofia Clássica, v.12, n.23, 2018).
Na tradução abaixo, fiz valer com rigor certos critérios que elegi. Entre eles, o uso da estrofe e dos versos entendidos em português como sáficos: a estrofe sáfica é aquela com três versos de dez sílabas e um curto, de quatro (chamado adônico). Os decassílabos sáficos são tônicos na quarta, oitava e décima sílabas, o que apliquei na minha versão.
Respeitei as pausas da pontuação (vírgulas, ponto alto e ponto final), bem como os cortes que a rigor compõem um encavalgamento. Mesmo estes encavalgamentos radicais - a separação de sílabas gregas em v.3-4, v.7-8 e v.11-12 -, eu os mantive na tradução, mimetizando nesse aspecto o texto original.
O poema 31 encena um triângulo amoroso, em que a persona poética, manifestamente uma mulher (παῖσαν, χλωροτέρα, v.14), observa seu objeto de desejo, outra mulher (φωνείσας, v.3-4, γελαίσας, v.5), conversando prazerosamente com um homem (ὤνηρ, v.2). Por ter a atenção da garota, o homem é considerado pela eu-lírica como um igual dos deuses (ἴσος θέοισιν, v.1). Note a sutileza do elogio, que não é ao homem, mas à garota: ele é igual a um deus porque conversa com ela, porque tem a atenção dela; isso é divino. E daí decorre toda a reação física de ciúme da voz poética, expressão que, segundo muitas opiniões, não encontrou jamais forma mais bem acabada do que esta. Abaixo o poema (do qual ignoro o incompleto verso 17, entendido como o início de uma nova estrofe, contudo perdida). A edição adotada é a de Campbell (1990):
φαίνεταί μοι κῆνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν᾽ ὤνηρ, ὄττις ἐνάντιός τοι
ἰσδάνει καὶ πλάσιον ἆδυ φωνεί-
σας ὐπακούει
καὶ γελαίσας ἰμέροεν, τό μ᾽ ἦ μὰν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόαισεν·
ὠς γὰρ ἔς σ᾽ ἴδω βρόχε᾽, ὤς με φώναι-
σ᾽ οὐδ᾽ ἒν ἔτ᾽ εἴκει,
ἀλλὰ κὰμ μὲν γλῶσσα <μ'> ἔαγε, λέπτον
δ᾽ αὔτικα χρῷ πῦρ ὐπαδεδρόμηκεν,
ὀππάτεσσι δ᾽ οὐδ᾽ ἒν ὄρημμ᾽, ἐπιρρόμ-
βεισι δ᾽ ἄκουαι,
κὰδ δέ μ' ἴδρως κακχέεται, τρόμος δὲ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ᾽ ὀλίγω ᾽πιδεύης
φαίνομ᾽ ἔμ᾽ αὔτ[ᾳ·
***
Igual aos deuses me parece ser
esse homem, ele que na tua frente
se senta e perto escuta quando fa-
las graciosa
e ris encantadora, o que em verdade
faz palpitar meu coração no peito:
basta mirar-te, não consigo fa-
lar coisa alguma,
pois minha língua fica inerte, súbito
percorre minha pele um fogo leve,
nada mais veem minhas vistas, zum-
bem meus ouvidos,
suor se espraia por meu corpo, um frêmito
me agita inteira, fico bem mais pálida
que relva, e prestes a morrer de fato
pareço estar.
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, David. Greek lyric I: Sappho and Alcaeus. Cambridge: Harvard University Press, 1990.
FLORES, Guilherme Gontijo. Fragmentos completos: Safo. São Paulo: Editora 34, 2017.
FONTES, Joaquim Brasil. Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.
RAGUSA, Giuliana. Safo de Lesbos: hino a Afrodite e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2011.
SOBRE O AUTOR
Luiz Carlos André Mangia Silva é professor associado da UEM. Pesquisa e traduz poesia helenística (epigrama) e romance grego (Dáfnis e Cloé, de Longo de Lesbos).